Crônica: Um amor de São João; Por Adelmo Barbosa


Eu estava olhando aquele balão sumindo lá pras bandas de Triunfo. Ainda via o claro do fogo feito com sebo do carneiro mocho que papai matou para aquele São João. 

O claro do fogo fazia-me discernir direitinho cada uma das muitas cores das abas coloridas do balão, separadas com arame de um oitavo de diâmetro, feito para segurar as hastes inferior e superior arredondadas. A inferior maior do que a superior para segurar o candeeiro que o minucioso baloneiro fez.

Fez como sempre fazia. Aquele velho baixinho, curvado pelos anos, chapéu de massa preto na cabeça, mãos calejadas do sol do tempo, das limpas de mato em tempos invernosos e de verões que ia de janeiro a dezembro nos piores anos de seca, aprendera a fabricar balão com o pai, numa profissão que passava de geração a geração há mais de um século e meio. Era ágil nas feitorias e no arrumado daquele primor de arte oval, com peso menor que o ar, mas suficiente para voar por léguas e léguas como uma estrela no céu, levada pelo vento poente que traquinava naquelas paragens.

Nas pedras, o som das roqueiras explodiam a pólvora comprada especificamente para aquele momento na última feira antes do São João.

Era o único período do ano que os meninos de bermuda sei lá de quê e alpercata de arrasto iam para a Rua, antes da festa da Santa de nossa devoção, no mês de dezembro. Em dezembro ia-se para a festa, comer uma folha de pão com refrigerante e andar atrás do andor da Santa. Naqueles dias ia-se para comprar os pipocos juninos: traque, espirro de bode, peido de véia e bombas daquelas que estremeciam as serras com o estrondo que faziam, soltadas dentro de latas velhas de Leite Ninho que ficavam jogadas por anos e anos no oitão de casa.

Mas eram as roqueiras que faziam os maiores estrondos, numa sinfonia sincrônica, em batidas contra as pedras dos lajeiros que ficavam no entorno das casas. Não tinha maestro, e ninguém quebrava a regra. Apenas quando um tiro não saía, por erro do roqueirista, era que o seguinte atirava pra não perder a sequência dos sons soltados de fazer medo a quem estava por perto. Os ouvidos ficavam zunindo de tanto barulho, mas a algazarra era a grande alegria. Assim como o deboche dos que erravam o prego da roqueira no contato com a pedra. Depois, era só tentar de novo e tudo seguia a sinfônica roqueirista


.Nas portas de cada casa as fogueiras acesas davam o tom daquele dia. O mais importante da tríade junina: Noite de São João. Durante todo o dia as mulheres preparavam as iguarias sertanejas que incluíam, além das comidas típicas feita com milho verde, o arroz vermelho, da lavra em anos fartos, comprado em anos curtos e o macarrão grosso, de marca Somassa. Era gostoso chupar aqueles palitos de macarrão, antes de levar uma chinelada nas costas, dada pela mãe, enquanto pronunciava o clássico refrão: “Para com isso menino”. Melhor ela do que o pai, esse não vinha com chinelinho besta não, já vinha era com chicote de três relhos de couro cru, feito pra açoitar animal nas estradas areentas da Rua. Bom mesmo eram as coxas de galinha e capões cevados no chiqueiro por dois meses, exclusivamente para aquela data. Gordos, gordos!

Aos homens, era reservada a responsabilidade de juntar a madeira e preparar a fogueira, matar os bodes e os porcos e receber as visitas que, invariavelmente, vinham nos visitar. Andavam de casa e casa, bebendo cachaça e comendo carne de capão, bode, gado e porco. As iguarias da cozinha de mamãe, comum em todas as casas

As fogueiras feitas no meio do terreiro, eram a expressão maior daquele dia 23, véspera de São João. Na prática, o dia do Santo Precursor de Jesus é 24 de junho, mas no Nordeste inicia-se a festa no dia 23 e não tem hora para acabar. Acesas às 6h horas em ponto, as fogueiras eram como uma religião. Em todas as casas, o fogaréu iluminavam a noite sertaneja. Num canto do “terreiro bem varrido” o mastro da bandeira de Nossa Senhora, fincado no início de maio, ainda tremulava ao vento. Por todo canto da casa, e mesmo no terreiro, bandeirolas de todas as cores tremulavam penduradas em barbantes de agave, no qual foram coladas com uma mistura de goma de mandioca e água de arroz coado.

E a noite se ia cheia de festas e encontros. Em algum lugar, ouvia-se o som de uma sanfona e bum-ts-cum-dum da zabumba misturado com triângulo, enquanto alguém se cantava músicas juninas. Ouvia-se o melhor que tinha: Luiz Gonzaga, Trio Nordestino, Assisão, Anastácia, Marinês e sua gente, cantando “Já andei quarenta léguas amontada numa égua procurando forró”. É arrepiante ouvir a Eterna Rainha do forró, sobretudo quando ela cantava aquela estrofe: “Eu gosto de relar bucho, de relar bucho com bucho até faiscar, pode ser moreno ou louro, pode ser com um crioulo, mais eu quero é forrozar”

Estava tão absorto em minhas lembranças que nem vi quando a moreninha chegou-se pelas minhas costas e com um toque sutil encostou a mão macia na minha cintura e sussurrou qualquer coisa no meu ouvido.

Apenas suspirei. Ela deu-me um beijo de leve e, sem mais nada falarmos um ao outro, ficamos ali apreciando aquele momento.

Nem olhei sua roupa, mas sabia que ela estava metida dentro de um vestido com saia semirrendada, bege, com grande flores como margaridas desenhadas no próprio pano. O cabelo moreno-índia solto ao vento, fluía de mansinho, parecendo sentir aquele momento, próprio para os namorados.

Não sei se “botei a faca no tronco da bananeira” para descobrir quem seria seu amado pra o resto da vida. Essas coisas que a gente vive no melhor tempo sertanejo-nordestino, faça chuva ou faça sol.

Não pensei em nada, apenas vivi o momento! A lua já caía lá pras bandas do poente e o balão sumia cada vez mais, até desaparecer de vez já depois do Carro Quebrado nas gargantas da Serra da Baixa Verde. As bombas continuavam a explodir, mas agora já esparsadas. Lá pro lado do Saco do Romão, começava o espetáculo dos bacamarteiros com seus estridentes sons que faziam estremecer a terra.

Do outro lado do riacho, a sanfona continuava seu repisado apaixonante e as vozes agora misturavam músicas nordestinas com caipiras dos Sertões de Minas e Goiás. Sertões de Guimarães, Tonico e Tinoco e Inezita

Agora o coração batia compassado e eu sentia que não havia pressa, porque ele acompanhava o passo da batida do coração dela e, em vez de dois “tuns, fazia um tum só”, como poeticamente disse o famoso escritor da serra dos Cariris Velhos, ao falar dos amores das terras de Taperoá

Por esses sertões tudo é igual. E sons de sanfonas, cantadores e bacamartes uniam-se àqueles dois corações que pareciam seguir a orquestra sertaneja da maior e mais bela festa que essas terras podem oferecer.

O São João bate dentro da gente como as sanfonas e as roqueiras. Queima como as brasas da fogueira e voa como aqueles balões pelos céus sertanejos.

Acordei com o barulho daquele fogo soltado pelo meu velho tio que sabia como ninguém “queimar” uma pessoa nas festas juninas. Traquinagem cultural e bonita daquelas plagas roceiras. E mamãe já preparava o café, assando o milho nas cinzas da fogueira, enquanto todos iam se achegando dos caminhos que ligam todos os cantos do Sertão.

Acordei enroscado no seu ombro, sentindo o doce orvalho do seu cabelo. Não me lembro o cheiro do seu perfume. Não sonhamos. Apenas vivemos um São João como nos velhos tempos.

Do que é bom não se sente saudade, sente-se vontade de viver de novo.