lembrando de João: Batuqueiro, batuta e verdadeiro! Por Barbosa

Era o ano de 1985. Eu já estudava no Onze, quando Dona Ilka Santana me falava de um menino humilde vindo das escolas de Princesa Isabel e que se matriculara no Pedro: era João, João Laércio. Já ali, juntou-se a Agostinho e Brasil, vindos do Romão Ferreira um ano antes. Com eles enfrentou e ganhou sua primeira de muitas eleições que disputaria: a do Grêmio Estudantil José Emiliano de Queiroz.

Conhecei-o logo em seguida, nas reuniões e assembleias paroquiais e diocesanas da Pastoral da Juventude do Meio Popular. Nas manifestações feitas em escala regional: em Itapetim, São José do Egito e São José do Belmonte, quando íamos em cima da carroceria de um caminhão, brincando e cantando enquanto ele tocava. Ou aqui em Flores, nas manifestações feitas debaixo do Tamboril no Riacho dos Barreiros e nas frondosas mangueiras da Lagoa do Saco. O politicamente correto com sua chatice e sem carisma, tirou-nos das carrocerias dos caminhões, por segurança, claro, mas tirou-nos também as batucadas nos acordes do violão de João, enquanto cantávamos, “O amanhã”, samba-enredo da União da Ilha do Governador, no carnaval de 1978, que aprendemos já na voz da monumental Simone. “Como será o amanhã? Responda quem souber (quem sabe é Deus). O que irá me acontecer? O meu destino será como Deus quiser”.

O destino o levou para os movimentos e daí para o Sindicato e a Campanha feita na “magrela” – a bicicleta – para montar a Chapa das Comunidades, disputar e perder para o poder político e econômico de Flores, na emocionante e acirrada disputa de 1988. 

Parecíamos perdidos, mas os velhos companheiros de sempre atiçaram os ânimos daqueles muito tristes e, mais ainda, cansados, ‘meninos’, apelidados de “meia dúzia de gatos pingados” que não punham medo em ninguém. Em seu discurso do Sermão da Montanha, Jesus disse: “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os mansos porque possuirão a terra”.

    A terra de João era dentro do Sindicato e ele o conquistou e galgou todos os degraus até a presidência. Humildade e persistência, sem arrogância nem mandonismo, mas com dignidade e coragem. E a coragem o levou para o Partido, e para a associação, e para a ONG, e em todas ele alcançou a presidência. Sem perder, em nenhum momento, a virtude da verdade, o carisma e a seriedade que o forjaram na luta de sempre. João defendia um projeto, um caminho que, juntos, levam à liberdade e à justiça social. Ao amor pelos outros e à busca de pão e de paz. 

João era severo, duro, às vezes atingia a gente com as palavras; quando usava o vocábulo “cidadão” já estava no ponto de não voltar mais atrás, sua palavra era lei e aquilo era a mais pura verdade. Não uma verdade sofista, relativa, mas uma verdade dura, direta, ética. Uma verdade completa e sem retorno. Não, ele não voltava atrás em sua palavra, aquela era a verdade e era ela que ele defendia. 

Em um mundo maleável, onde a dialética deve prevalecer, é preciso saber falar sem magoar, mas João não abria mão de sua postura e a defendia com toda sua força de vontade e desejo do bem comum. Um bem que ele perseguia desde a infância. Um bem que ele construiu na estrada entre o Cipó e Flores, passando por Princesa Isabel, para depois ganhar os quatro cantos desse Sertão por onde ele andou. E ele andou muito. E ele lutou muito, e ele brigou muito por uma verdade cheia de justiça contra as injustiças das oligarquias modernas que têm o prazer de pisar, espezinhar e sapatear em cima das pessoas de rosto toldado pelo sol, de pele enrugada, chapéu de palha e lenço amarrado na cabeça.

Essas gentes são acostumadas aos sofrimentos; sofrimentos, sim, no plural mesmo, porque são muitos. Não é apenas a seca, é a seca, a cerca, a falta de água, a falta de pão na mesa quase sempre vazia de amor e de paz. Não essa paz vazia, sem coração e sem alma, mas uma paz de pão e justiça e de direitos iguais.

João era um homem direito, ironicamente, era de esquerda, mas em sua magnitude de semeador de paz, era um homem direito. Não se vangloriava do que fazia, mas dava orgulho ver o que ele fazia. Nem sempre a humildade é uma virtude cega, que abaixa a cabeça e aceita as condições. João nas as aceitava. A humildade dele não era cega, ela enxergava a dor do outro, mesmo que fizesse o outro sentir dor com palavras sempre verídicas. Era para fazê-lo enxergar que a luta pela libertação, muito mais que pela liberdade, é um caminho dolorido, espinhoso, cheio de curvas, ladeiras e pedras. Como as ladeiras e as pedras do caminho do Cipó, na subida do maciço da Borborema.

João trazia a verdade de um homem sertanejo que cresceu vendo a pobreza do seu povo, e a distância que o separava de tudo o que é apenas garantia de direitos constitucionais ou sagrados, na verdadeira acepção da palavra.

As terras vermelhas e a poeira sertaneja dos cumes das serras, assim como as estradas emlamaçadas por onde andava eram as dificuldades que aprendeu a ver e lutar contra elas. Não, quem luta como João lutou não vive a pobreza em si, porque já adquiriu a sapiência de que essa pobreza existe no campo material, mas na consciência ele a venceu e agora vive a luta de uma busca pela justiça onde todos possam desfrutá-la.

João era assim: no sindicato, na cooperativa, na associação, no partido, na igreja, na família, entre os companheiros, com os agricultores e as agricultoras, em casa, onde quer que estivesse ele defendia uma verdade que todos procuram e que nem sempre é suprema, sobretudo numa terra coronelística em que há sempre a batalha para não cair debaixo da bota que esmaga, que fere, que jorra sangue. Sangue vermelho como os barros das terras da Moça Branca, no cume da Serra.

Mas João também era alegria, era risada farta, era anedotas dessas que fazem a gente rir sempre que as ouve. João era a alegria porque era o animador da festa. Na música “Tom Maior” de Martinho da Vila, está a essência desse João que era o mesmo, na alegria e na luta constante, buscando sempre um Brasil melhor para todos os que, como ele sempre vivem com o pouco mas sonham com o suficiente para uma vida digna. 

João era assim: era um cara que sabia o que é a liberdade, e a viu na construção de sua família, e no sonho realizado no seu filho. João amou a liberdade, cantou em tom maior e, apesar de ter sido por pouco tempo, teve “a felicidade de ver um Brasil melhor”, mesmo tendo saído da vida terrena num momento em que a liberdade continua sendo buscada, e muitas vezes, esmagada pela ignorância e prepotência dos que sentem o prazer de esmagar o pobre, o humilde. João sabia que a liberdade é uma busca constante. E, nos acordes de sua sanfona, ou no choro doce do seu violão, essa liberdade justa, solidária e fraterna é a base de tudo o que ele viu e viveu enquanto esteve de passagem pela Terra.

João agora é luz, é fermento na massa da terra, é história. História dessas bem contadas, que vale a pena sempre contar de novo. Agora, João batuca no céu, no Reino pelo qual sempre lutou. De paz e de justiça com direitos iguais.

João era batuta!


Neste texto foram usadas frases das seguintes músicas: Por um pedaço de pão (Padre Zezinho); O amanhã: (Composição: Didi e João Sérgio – samba enredo da Escola de Samba União da Ilha do Governador, no carnaval de 1978); Pão em todas as mesas: (Zé Vicente); Tom maior: (Martinho da Vila); e Fermento na massa (Reginaldo Veloso).


Por Adelmo Barbosa