A vida é importante. A música, fundamental


Por Roberto Vieira*

Existe um fenômeno exótico no mundo contemporâneo. Um olhar desfocado da realidade, observando a arte pelo viés da política. Como se a arte fosse bela quando politicamente correta. Como se as qualidades de um pintor ou escritor fossem secundárias aos seus posicionamentos sociais.

VIDA E ARTE

Claro que a história de vida do artista pode enriquecer ainda mais a sua obra. Tornar este artista uma lenda. Assim como suas posições ditatoriais podem colocar pontos de interrogação na sua produção artística. Mas não se pode conceber uma inversão de valores.
A obra de Pablo Neruda é imensa, independentemente da sua defesa de regimes stalinistas. Casa Grande e Senzala é um dos mais importantes livros de nossa literatura, mesmo com o posicionamento de Gilberto Freyre na ditadura militar. Chico Buarque é genial mesmo com a defesa do regime castrista. Elis já seria lendária mesmo sem um bêbado e uma equilibrista.

A MÚSICA É O QUE IMPORTA

Nos últimos dias glorificamos a Elza Soares miserável, faminta, esposa de Garrincha, defensora dos negros, supermulher. Tudo isso é verdade. Tudo isso deve ser lembrado.

Porém, o que tornou Elza estrela de suprema grandeza foi a MÚSICA. Elza foi uma das três maiores cantoras deste país, uma das maiores cantoras do mundo, ao ponto de ser quase inacreditável sua performance moderna, repleta de técnica e sofisticação após a infância de sofrimento indizível.

OUVIR ELZA

Saudar Elza Soares e esquecer de ouvir Elza Soares é como aplaudir Lorca por sua morte sem conhecer os versos e a música do poeta. Como glorificar Joan Baez por seu ativismo político e não escutar suas canções.

Existem milhões de obras medíocres defendendo a igualdade social e a liberdade. As boas intenções de seus autores não as tornam obras primas. Um livro ruim sempre será um livro ruim e não uma cabana do Pai Tomás ou uma Escrava Isaura, assim como uma cantora ruim não será uma Billie Holiday e uma melodia chifrim apenas rima com Blowin' in the wind.

Aplaudam e reverenciem Elza.

Sempre.

Mas não esqueçam de ouvir Elza Soares.

Jamais...

*Médico oftalmologista, pesquisador e escritor. Texto escrito originalmente para o jornal O Poder.