CRÔNICA: Zé de Severino; Valente como o mandacaru! Por Adelmo Barbosa*

Naquele ano de 1997, começava a ser desenhada uma organização de produtores e produtoras rurais associados em Flores. As associações já existiam desde o finalzinho da década de 1980. E na área da antiga Associação Atlética Banco do Brasil, lá estavam rostos rústicos, chapéus de massa e de palha e vozes fortes.

Homens simples e robustos. Estilo típico sertanejo. Pele rosada e queimada pelo sol daqueles anos de seca bruta que se iniciaram no final da década de 1970 e ainda não haviam terminado.

Muitos não sabiam ler. Malemá assinavam o próprio nome, com os dedos enfarpados de espinho de jurema preta, das foiçadas da vida, ressoando nas encostas das Serras da Baixa Verde, das gargantas do Caroá e do Bom Jesus nas cercanias de Roças Velhas.

No meio deles um chapéu de massa preto. Ainda novo. Braços roliços. Pele corada. Corpo valente. Era Zé de Severino. Vindo das lutas diárias pela água das Roças Velhas. Brigando por ela como um direito para os moradores da região do Gabriel. 

Sabia de cor cada uma das famílias dali. E tinha em papel o nome de cada uma das famílias das cinco comunidade que ficam do outro lado da BR 232: Riacho da Onça, Baixa da Torre, Gabriel, Caldeirão dos Bois e Barragem do Mel. O único no município de Flores que sempre conheceu o povo e sua prole tintim por tintim.

Trabalhador rural, agricultor que tirava em anos variados cem sacos de feijão. Dez em anos secos. Trabalhando praticamente sozinho, porque os filhos ainda eram pequenos.

Integrante de um grupo de homens, que se conta nos dedos, com vontade de mudar Flores. Pela luta para conscientizar outros homens, e mulheres e meninos, velhos, jovens e adultos, de que, para se ter alguma coisa na vida, é preciso viver em comunidade. 

Tudo no Caldeirão dos Bois respira Zé de Severino. A escola, a Igreja, a água. 

A água: esse bem precioso que nos garante a vida. Foi sua bandeira de luta para o bem comum. Valente e destemido, como um mandacaru que expõe espinhos mas mereja o doce líquido que mata a sede em tempos de estio prolongado. Desarmado, não tinha medo de enfrentar cara feia. Andava a pé, de chinelo de dedo. Fosse nos meios dias de sol a pino, fosse nas noites escuras. Na escuridão que cerca as serras de Roças Velhas. 

Defendia uma causa com unhas e dentes. Defendeu com unhas e dentes uma proposta para mudar Flores. Não uma mudança de pessoas, mas a mudança nas pessoas. No conceito das pessoas. 

Zé de Severino faz parte de um grupo de homens e mulheres que não vieram ao mundo para si, vieram para mudar o eixo da história e ensinar às gerações mais novas que não se vive de pernas cruzadas na soleira da porta esperando a esmola. É preciso enfrentar o sol quente das tardes sertanejas, as lamas das estradas e as noites de céu estrelado. É preciso enfrentar o canto da cigarra e o ataque das formigas para buscar a vida em comum.

Zé de Severino faz parte da geração de Liinha, de Raimundo de Zabé, de Zé Antonio, de Dona Socorro, de Reginaldo Fernandes, de Dona Maria Juvenal, de Seu Nezinho de Fátima, de Zé Araújo, de Dona Lourdes Pessoa, de Cícero de Antonio de Eládia, pedra lispe que ele mesmo lapidou e transformou em seu companheiro de jornada nos últimos anos.

Zé era o homem turro, mas, valente, corajoso, destemido, que não temia o incerto, que não andava armado e não dobrava caminho. Formado na jornada da luta diária do sol escaldante do Sertão. Da poeira dos ventos. Do chão batido. Da enxada tinindo no tabuleiro seco. Era o homem da água para todos. Sem propaganda política. Feita apenas através de uma ideia, de um projeto pessoal. Todas as lideranças da região do São João dos Leites devem a Zé de Severino, ele foi o espelho de todos e de cada um em particular. Everaldo da Barragem, Luiz Heleno, Luiz de João Preto, Cícero Golveia, Erivelton do Gabriel. Não existem gregos nem troianos que não deva a Zé de Severino sua inserção na luta. 

A água do Mereré que hoje alimenta as pessoas, sustenta os animais e irriga as plantações da Região do Gabriel tem as mãos e os pés de Zé de Severino. Um homem da água.

Aquele coração valente, jamais resistiria ao solavanco de um AVC (Acidente Vascular Cerebral), porque pulsava a 120 por minuto, contrariando a medicina. É assim, portanto, que deve pulsar para sempre na alma de cada um dos moradores do Caldeirão dos Bois e da região do Gabriel. E deve pulsar para sempre na alma de cada um de nós, para nos mostrar que não faz medo a luta. Que é preciso enfrentar a poeira e o sol para mudar a vida. Para garantir a vida.

Aquele homem marrento, estilo sertanejo puro, não desaparecerá assim. Ele permanecerá no fronte, para nos mostrar que não devemos cortar caminho, porque a luta pela dignidade da vida é uma constante. E é constante. Não tem trégua. A luta não dá trégua. Pois, quando acaba uma batalha, outra já está logo alii. E o canto da cigarra é forte no verão, mas não é mais doce e esperançoso do que o canto da acauã profetizando o inverno logo à frente.

Foi bom trabalhar com você Zé. Foi melhor ainda conhecer na tua coragem, a força para entender que os homens e as mulheres de Flores precisam continuar sempre, e sempre, e sempre a luta pelo bem da vida. Começando pela água: tua bandeira.

Um dia a gente se vê de novo, Zé, e vamos dar muitas risadas desses perrengues sem fim que nos cerqueiam todos os dias. 

Um abraço, Companheiro!

Professor*