Enem: Quantos quilômetros sua mãe percorre por dia? Adelmo Barbosa*

Meu pai falava: “eu queria descobrir quantos quilômetros uma mulher anda dentro de uma casa durante o dia”. Era uma alusão ao ir e vir de Mamãe nos afazeres domésticos. Um ir e vir num repisado de chinelo de dedo no chap-chap do dia a dia para manter a casa em ordem.

No que diz respeito a Mamãe, “casa” era a nossa casa mesmo. Na verdade, quem cuidava mais era minha mais velha, a quem a gente chamava “Tetê”, essas coisas nordestinas comuns de se colocar apelido nas pessoas ou por zoeira, para tirar o sarro, ou para evitar de chamar pelo nome.

Quem melhor deu a definição de apelido aos nordestinos foi Ivanildo Vila Nova em seu “Nordeste independente”, quando disse que “as crianças seriam batizadas só com nomes de santos como a gente. Não teriam mais nomes diferentes que não pode botar nem apelido”. E foi referendado por Severino de Aracajú que, na Paróquia de Taperoá, disse que as pessoas o chamavam de Capitão só porque ele estava armado até os dentes, se não tivesse, seria chamado como qualquer outro Severino: “Biu”.

Mas não é esse o assunto aqui, portanto, voltemos ao passado e à vida da mulher nordestina, reflexo de toda mulher brasileira. Levanta-se antes do que todo mundo e se deita depois que todos já estão nas redes. É o resultado de um patriarcalismo que perdura ao longo do tempo, desde a Grécia Antiga, mesmo na democracia ateniense. 

À mulher foi concebida a obrigação de cuidar da casa e da educação dos filhos. Maria, quando descobriu-se grávida, não foi chorar num canto, só porque só tinha quinze anos, subiu três quilômetros de um ladeirão para ajudar sua prima Isabel, cinquenta anos mais velha que ela e também grávida. Ambas traziam no seio materno a responsabilidade de salvar o mundo.

Já mais recente, Anita Garibaldi usou de todos os artifícios para manter-se ao lado de Giuseppe, mas, para isso, teve que se vestir de homem. Já na mesma Guerra dos Farrapos, a Casa das Sete Mulheres era o refúgio dos homens da Guerra, local de batalhas internas, amores e muita, muita luta, inclusive com armas, pelas mãos femininas da História. Ana Terra lavava, passava, labutava na roça com o pai e os irmãos, apanhava e sofria quando os ventos dos chapadões gaúchos lhes traziam alguma notícia difícil.

Por sua vez, Diadorim, das Veredas de Guimarães, para não ser expulsa do grupo nômade dos vastos Sertões das Minas Gerais, teve que se travestir de homem e esconder do bando o seu lado feminino.

Mas no dia a dia, desde as quatro da manhã, a mulher já está de pé, fazendo o café, cevando o pão, assoprando o fogo, ajeitando a mobília, chamando os meninos, botando a mesa, olhando a hora, medindo a meisinha pra o bruguelo com tosse. O café do marido, a roupa, o chapéu, o bisaco e a rapadura. 

Tem que sair cedo pra levar os meninos na escola, porque lá tem hora marcada. E quando chega de volta, mal dá bons dias às vizinhas. Tem que ir botar as cabras na roça, dar o leite do bezerro enjeitado, cortar a palma pra os bois quando chegarem. Olhar o chiqueiro dos porcos, espantar os tius e as raposas, deitar a galinha, procurar os ovos no mato, tanger o gato do fogão. Espremer a mandioca pra fazer o bolo de massa puba, quebrar o milho pra pamonha, torrar o café, pelar o arroz pra fazer Noite de São João. 

E nove horas tem que estar com as panelas na cabeça pra levar para os trabalhadores que estão, coitados, suados na lida diária, porque homem trabalha demais de Sol a Sol. E lá chegando, depois de botar o almoço nos pratos, pega no cabo da enxada pra mostrar que num é mais fraca do que o homem no eito. Corta de machado, ara a terra, ajeita as vacas e tem que voltar, porque, onze horas, vai pegar os meninos na escola. 

Já ajeitou a casa, lavou a roupa, passou a camisa branca do marido. Deu dez tons ao filho mais velho, escondido do pai, pra ele comprar uma camisa nova. Varreu os terreiros, ajeitou os porcos. Aí sentou-se pra comer aquele caldo de feijão com farinha e o pescoço do frango, de onde vai quebrando cada ossinho pra encontrar algum tutano. 

É hora de ralar o milho pra fazer o angu. Daqui a pouco marido chega com a batalha pra jantar e o angu tem que está no ponto. Depois, se senta, reza o terço, porque a vida já é uma ladainha. Mesmo assim, se lembra que faltou ajeitar o pavio dos candeeiros, aí, enquanto a filha passa um café pra os convidados e traz um tição pra acender o cigarro de palha do pai, ela começa a fiar o algodão para trocar todos os pavios dos seis candeeiros que alumia a casa. 

A bacia com a água pra o homem lavar os pés tem que estar impecável. A toalha branca, limpinha, as redes todas cheirando, as ceroulas consertadas, feitas também as barras das calças dos filhos, e, quando um briga com o outro, o pai, na sua razão de homem muito trabalhador reclama: “culpa tua, porque num deu educação a esses meninos”? Quem assistiu ou leu “Éramos Seis”?

Chega a encomenda dos brigadeiros de aniversário. A filha da vizinha precisa de um lambedor e ela tem que ir pegar a malva santa no canteiro. Eita, esqueceu-se de aguar durante o dia! “Como tão murchinas as bichinhas?”, amanhã eu não posso me esquecer disso.

Luiz Gonzaga não mentiu quando disse que “com tudo isso, ainda sobra um tempinho, um abraço e um carinho... E um moleque sambudinho todo ano é pra nascer”. Tem que deitar cedo (dez e meia). Esqueceu-se de botar as latas na goteira, se levanta e bota lenha pra dentro, porque “a noite é d’água”. Porque mulher não trabalha.

Por todo o Brasil, jovens das mais diferentes idades, cores, crenças, condições e qualquer outra situação que o valha, tentaram dizer em trinta linhas manuscritas, o que tentei aqui em mais de setenta digitadas. E olha, que não me lembrei de tudo.

Quase meio século depois da morte de meu pai, o Enem tentou explicar essa equação sem fim. Felizmente, quando nós começamos a nos entender por gente, mamãe nunca mais acendeu o fogão lá em casa. Papai não deixava. Cada dia era um de nós que acendia. E, ai daquele que não fosse!

E você, sabe dizer quantos quilômetros sua mãe, sua mulher e sua irmã anda dentro de casa a cada dia?


*Professor